Feliz ano novo!
Para começar o ano super bem, nada como um texto escrito em momentos de surto, não é mesmo?
Não costumo escrever sob efeito de muitas emoções. Mesmo quando a justificativa para o texto existir seja sentimental, os meus momentos de escrita costumam ser organizados, quase que coreografados.
O texto a seguir, porém, foge bem a regra. Estava em um dia péssimo, depois de ouvir todo tipo de baboseira misógina e assim, inevitavelmente me lembrar do quão miserável é a condição de ter sido socializada como mulher.
Como reação a esse dia horrível, tive um surto de raiva no meio da noite e resolvi… lavar o banheiro. E depois escrever um texto. As duas ações com o mesmo nível de exasperação.
Pensei bastante se publicaria ou não, mas resolvi que pode ser que eu convença alguém a fazer as pazes com o seu demônio do ressentimento alimentado por anos de violências. Com certeza ele tem muito o que dizer.
Esse é o contexto.
Não mexi muito no texto na fase de revisão para não cair na tentação de deixá-lo mais suave. Acho que ele só faz sentido sendo raivoso e caótico.
Espero que goste. Ou que fique furiosa.
Eu odeio ser mulher
Esfregar o chão do banheiro com toda a fúria do mundo enquanto tento não acordar minha mãe que dorme no quarto ao lado, sentindo o nariz queimar com o cheiro de água sanitária, não é exatamente o que eu esperava de uma madrugada de terça-feira.
Mas o que fazer com o ódio quando há câmeras por todos os cantos prontas para te incriminar pelo terrível crime de violência contra o rosto de algum sujeito na rua?
Não sei em que idade a raiva se instalou ao ponto de não saber mais separá-la de todo o resto das minhas tripas. Acordo pela manhã, ela está lá, me lembrando de tudo. E de todos eles. Às vezes, ela me acorda na madrugada. Muitas vezes, me visita nos sonhos.
Talvez não tenha ficado claro ainda, mas tenho uma raiva crônica de ser mulher. Ou pelo menos do inferno dantesco que a masculinidade faz dessa experiência.
E mais: tô cansada pra caralho de todas nós fingindo que não. “How I love being a woman” numa rua deserta às 23h. “I’m just a girl” exibindo mais um sorriso forçado quando mais um cara fala a coisa mais estúpida que já escutei na minha vida. Tão satisfatório e feminino assistir uma review do lançamento Rare Beauty enquanto lembro que eu e todas as mulheres que conheço já passaram por assédio quando eram crianças, quando não de estupro. Vamos ativar nossa energia feminina enquanto gritamos: magras! magras! magras!
Sabe, até aqui eu já estive domesticada o suficiente pela civilização para cumprir meus papéis sociais sem deixar esse sentimento grotesco causar grandes prejuízos. Me graduei, trabalho, sou uma boa filha, pago minhas contas em dia. Só que especificamente hoje, o dia pareceu um roteiro em que a faxina noturna foi o clímax cuidadosamente construído em atos. O desfecho é este texto tosco.
Não acredita? Vou te contar.
Acordei cedinho pela manhã, e saí sem comer nada porque não havia nenhuma opção light o suficiente na despensa. Outro dia, minha família me lembrou que ganhei peso. E esse foi o primeiro pensamento que tive antes de pilotar 7 km até o trabalho de estômago vazio.
Chegando lá, ainda tinha alguns minutos antes do expediente – sempre chego cedinho, já falei como sou uma funcionária exemplar? – então resolvi ler um dos vários textos salvos no Substack. Nele, a Mary Brito relata como a sua primeira viagem sozinha foi perturbada por homens mais velhos enquanto ela, recém adulta, só queria curtir a cidade maravilhosa. Fiquei com raiva. Deixei um comentário pra ela dizendo isso.
Mas tudo bem, né? Mais um caso de assédio. Como isso de café-da-manhã – é baixa caloria, não vai afetar minha dieta. Sigamos com o dia.
Um conhecido X (de esquerda, tá?) fala, abertamente, mais um tópico na lista do que não é aceitável numa mulher: não pode ser piriguete, ele não aceita mulher vulgar. Ah sim, essa eu nunca tinha escutado. Tente levar sua contribuição para a ABNT e quem sabe tornar isso uma norma técnica na fábrica do feminino. Vamos eliminar as gostosas do mundo! Tudo porque o importantíssimo fulano-de-tal não gosta de seios à mostra e minissaias!
Em algum momento mais tarde, outra fala brilhante que escutei foi: “eu tenho um grupo no WhatsApp para falar coisas ‘canceláveis’ com meus amigos. Sabe, dar uma pausa na militância, haha”. Bom, eu não queria ser a mensageira dessa péssima notícia, mas se você precisa de um grupo pra descarregar misoginia & outros preconceitos, você não é militante porra nenhuma. Pode virar à direita e seguir pela alameda do conservadorismo toda vida.
Daí eu escuto uma mulher falando mal de outra mulher. Porque essa outra mulher é uma escrota? Não. É por causa da aparência dela. Do jeito que ela se expressa. E claro, ao lado dessa mulher que solta as “piadinhas”, tem um cara fazendo um coro.
Já é noite. Recebo um print no meu celular. É um cara – que eu TAMBÉM conheço – relacionando lei de atração com “coisa de mulher”. Não é um gatilho forte (tenho certeza que ele sabe fazer melhor que isso), mas foi a gota d’água.
A partir daí, foi só choro e espuma por todo lado. E agora, meus dedos enrugados digitando no laptop.
Eu adoro escrever. Ainda bem, porque é com isso que ganho dinheiro e é isso que ocupa boa parte do meu dia. Mas as coisas chegaram a tal ponto que começo a me questionar: não fosse o rancor inerente de ser mulher, eu ainda estaria produzindo textos? E se tudo o que aprendi a fazer, especialmente o que aprendi a escrever, não seja nada mais que uma distração para o vírus do ódio?
Lembro que quando comecei essa news, toda empolgada em ter um laboratório de textos e poder compartilhar com as pessoas, a sincera reação de um ex-colega foi chegar no meu WhatsApp e me mandar um CALHAMAÇO que ele tinha escrito e estava ansiosíssimo pra me mostrar. Nada de “que legal o seu projeto!” nem “me passa sua chave pix, você merece um agrado”. Não. Era só ele querendo se exibir mesmo, no seco.
Outro, mais sutil, só me mandou uma DM me perguntando como que faz pra criar uma news também. A maioria dos (ex) amigos (homens) nem sequer se inscreveu pra me iludir e incentivar.
De certo modo, eu tô aqui também para tirar satisfação com a minha escrita e tudo o que existe ao redor dela. A academia, os livros que eu li, os filmes que assisti, os clubes de leitura que frequentei, nada disso me livrou da sensação constante de que estamos todas sendo feitas de idiotas. Que nos bastidores do espetáculo da inclusão, desconstrução e web-marxismo-leninismo, toda uma parcela bem específica de homens está rindo da nossa cara e deixando que a gente brinque de ser gente.
Ai, ai. Mas que ambição essa, né? Imagina só! Mulher querendo ser gente!
Em troca – porque tem que ter algo em troca, né? O teatro custa dinheiro e mão-de-obra, afinal –, a docilidade. Meu tom de voz baixo e agradável. Meus constantes pedidos de desculpas. Minhas lágrimas (a fragilidade é tão feminina!). Meus modos educados. Minha gratidão.
Posso até surtar, mas dentro do banheiro. De madrugada. E enquanto limpo, afinal, a administração do tempo é importante para a mulher moderna do clube das 5 da manhã.
Perceba o equilíbrio delicado que existe nisso e como todo o meu comportamento — e talvez o seu, também — até aqui está pautado em não deixar escorrer pelos orifícios o líquido viscoso do ódio. Perceba como o dia foi uma constante provocação em abalar as frágeis engrenagens que compõem essa farsa.
E aí eu precisei adiar mais uma vez o meu texto civilizado e cheio de timidez intelectual sobre Dias Perfeitos (2023) porque eu precisava deixar registrado em algum lugar que eu fiz as pazes com o meu ódio.
E é só porque não ganhei nada significativo deixando ele acorrentado. Não importa o quanto eu publique, não importa o quanto eu me especialize e tente me encaixar, sempre vai ter um cara “naturalmente” mais talentoso, doido para me mostrar seu mais novo projeto brilhante.
Eu tentei. Tentei acreditar no discurso de girl boss e de empoderamento. Mas tô cansada. Fora >e DENTRO < da bolha de pseudocomunistas da internet, homens continuam sendo homens. E muitas mulheres continuam achando que precisam da validação deles.
Se o ódio é capaz de me privar do sagrado sono para estar produzindo um texto que chove no molhado e que não vai me render um centavo sequer, eu acredito 100% em sua força pra me proteger e guiar.
Antes de me despedir e tentar dormir com o meu mais novo amigo ao meu lado, quero deixar dois recados mal-educados.

Para as mulheres (todas)
Vamos parar de ser tontas. Não temos esse luxo. Reproduzir misoginia é cuspir para cima, não importa o quanto os caras que estão ao seu redor te digam o quanto você é diferente e esclarecida. O mundo não é nosso.
Para os homens (eles sabem de quem estou falando):
Enfie a lei da atração no seu cu. Não quero saber suas opiniões sobre a roupa de ninguém. Também não ligo pras suas opiniões burras sobre minorias. Eu não esqueci as suas agressões e não vou perdoá-las. Você não é tão esperto quanto pensa. Nem tão talentoso. Aprenda a cozinhar decentemente. E o mais importante: nos deixem em paz.
Atualizações & Links bacanas
✱ Estou apaixonada pelas obras da Belkis Ayón, artista cubana. Esse perfil do Instagram tem um compilado de algumas das coisas que ela já criou.
✱ Tô viciada nos textos da intern3t!!!11. A lista de livros sobre internet e anticapitalismo está genial (quero ler todos).
✱ Falando em genialidade, esse texto da Max fez minha semana.
✱ É dia 08 de janeiro e eu ainda não vi nenhuma unidade de filme. DESGRAÇA.
✱ Estou lendo Temporada de furacões (2021). Gostando bastante até aqui!
✱ Assisti a série Cem anos de solidão (2024) e curti muito. Pensando seriamente em reler o livro quando não estiver atolada de trabalho.
✱ Saiu um texto meu no Delirium Nerd falando sobre o mangá & anime Look back!
Eu nao só amei o texto de mulher raivosa como eu sou, como a hora em que ele apareceu pra mim. Em meio à uma crise de ansiedade causada pelos acumulos pessoais e profissionais que só uma mulher é capaz de experienciar, em meio ao choro e ódio de tudo, entrei no substack e me apareceu seu texto. Eu te entendo demais, Beatriz! As vezes eu queria me iludir achando que as coisas funcionam bem pra nós, que estamos perto de igualdades e etc, mas a real é que tamo cada dia mais longe, se iludindo com mais e mais info por aqui, da proxima coisa que tem que ter, que tem que fazer. E eu to bem cansada também. As vezes quero descansar da pauta feminista, mas nao consigo desvincular as coisas... E que bom que voce escreveu nesse momento de raiva. Acho que a gente precisa de mais textos assim, cheio de ódio.
Deixei pra ler sua newsletter na manhã de sábado pra poder ter tempo de ler com calma. Eu sabia que vinha bomba hahahahahha
Primeiro: desejo que essa raiva seja sua potência pra sempre. Não que ela te engula, mas que ela nunca te deixe como motivadora. Porque o mundo é muito errado pra gente e temos que nos indignar. Eu tô com 35 anos e mantenho a minha indignação dos 20. Quero estar com ela aos 50 porque sei que as coisas não vão mudar estruturalmente até lá.
Segundo: os exemplos todos que você citou, principalmente dos esquerdomachos... Eu tô eliminando todos eles da minha vida. Amigos que eu sempre considerei pessoas ótimas, mas que no fim das contas, quando eu precisava de apoio a qualquer trabalho, um incentivo mesmo, estavam simplesmente CAGANDO. Jamais quiseram saber dos meus projetos. Mas sempre prontos pra me pedir conselhos para as ideias deles. E na mesa do bar se comportam da mesma forma: falam de si o tempo todo. O tempo todo mesmo. Outro dia disse ao meu marido: eu tô por um fio de mandar um amigo dele ir tomar no cu. Melhor a gente parar de forçar a barra e não se encontrar mais. Ele entendeu porque sabe que vai acontecer.
Terceiro: sempre seremos taxadas de malucas, emocionadas, descontroladas... Então melhor se impor mesmo. Porque de um jeito ou de outro a gente vão ser consideradas errada. Então vamos soltar um grande foda-se pra todos que pisarem no calo. E quanto às mulheres ao redor que ainda estão no esquema deles... Eu tô deixando um tempo de lado, ver o que elas pensam da vida... Não estou desperdiçando energia, não. Cada uma no seu tempo e eu respeitando meu espaço.
Que bom que você escreveu esse texto. Isso tem que ser partilhado, sim. A gente tem que validar nossa indignação pra nós mesmas. E fazer outras verem que não estão passando pelas mesmas situações sozinhas.
A gente se apoia de longe!
Um abraço apertado, espero que a raiva durma um pouco e você desfrute das coisas boas que conquista todos os dias!