Vovô, eu achava que não conhecia a dor do luto ainda. Até agora, com 24 anos, não precisei dar adeus a uma pessoa querida. Nunca tive que velar um corpo que um dia abracei com força, nem lidar com a estranha burocracia de um enterro, reduzindo toda a existência de uma pessoa querida a papeis, cobranças a pagar e a escolha da cor de algumas flores.
Só que toda vez que penso em você, que se foi antes que eu conseguisse pronunciar seu nome, minha garganta se fecha. Como pode isso, vô? Como posso sofrer a falta de quem não tenho lembrança alguma? Será que sofrer a falta de quem você nunca conheceu de verdade pode ser um tipo de luto?
Quem perde alguém, tem as lembranças para ser confortado e assombrado. E aí mora uma injustiça que me faz não conseguir perdoar o acaso. Você me amou e me segurou no colo, mas eu não tive tempo para retribuir. E quanto a isso, eu sequer posso te pedir perdão, tanto pelo absurdo da proposta quanto pela ciência estranha de que você não iria querer isso.
Convivi com os vestígios de sua passagem pela terra desde muito cedo. Gostava de brincar no seu quarto no fundo do quintal da minha casa, onde você passou alguns dos seus últimos momentos. Já não tinha nada seu lá, a não ser as paredes do quarto e o banheiro, cenários das minhas brincadeiras. E tinha eu, pequena, uma prova viva de que você existiu. Fico pensando se você participaria das minhas brincadeiras.
Não tendo qualquer memória nossa para guardar, pego emprestada as da minha mãe, irmã e tia. Gosto de ouvi-las de novo e de novo, cada detalhe da sua personalidade, seus gostos e hábitos guardadas por essas mulheres, são retalhos recolhidos que eu uso para montar um Jorge Dota – ou Ken-chan – só meu.
Semanas atrás, fui a um relojoeiro que te conheceu. Ele era meio maluco, e uma das maluquices que ele disse que é algo em mim lembrava você. Não sei o quanto disso é mesmo verdade, mas o que tem de crível em tudo o que estou escrevendo aqui, né? Assim como eu inventei você na minha cabeça, escolhi inventar que somos parecidos e temos muito em comum.
Em minha imaginação, já perdi mil vezes pra você nos jogos de cartas. Te mostrei, contente, meu certificado de aprovação no JLPT. Juntos, tomamos café e fizemos seus pratos favoritos. Assistimos seus filmes favoritos. E hoje, comemoramos felizes seus 84 anos e meu último dia de aula na graduação.
Na verdade, você também me inventou quando resolveu me amar. Eu era minúscula demais para ter qualquer atributo reconhecível. Em sua mente, você deve ter criado várias características para a Beatriz. Será que você me imaginava doce? Levada? Curiosa? Que tipo de futuro você imaginava para mim? Teria orgulho do que me tornei?
O que sei, pelos relatos que já ouvi, é que você se orgulhava da nossa suposta semelhança física. Já lamentei pra mamãe que você ficaria decepcionado se me visse hoje e concluísse que eu já não tenho mais o mesmo cabelo muito liso, nem seus olhos “puxados”, ao que ela respondeu: “e você acha mesmo que ele daria o braço a torcer? Tenho certeza que ele continuaria insistindo que vocês são iguaizinhos.”
Aliás, experimentei fazer tempurá de folha de cenoura. É uma delícia mesmo!
Quanto a nossa família, ela continua sendo meio esquisita. Além das misturas gostosas de culturas, somos cheios de silêncios e distâncias. Algumas destas, necessárias. Outras, só dolorosas mesmo. E todos nós compartilhamos um amor sem grandes enunciações, mas que insiste em nos ligar de algum modo.
Anos atrás, também perdemos sua irmã Maria. Dela eu me lembro. Principalmente da sua casa, com muitos bichos engraçados, imagens católicas e comidas deliciosas. Foi tão estranho, no velório dela, ver tantos rostos com quem compartilho DNA mas que eu nem conheço o nome. E é só isso que compartilho com eles que apareceram por lá: a genética. A família Dota sempre foi, para mim, um grupo muito pequeno de pessoas interessantes. Um pequeno clã.
Sabe, vovô, talvez você ficasse feliz em saber que eu continuo sendo muito amada, mesmo sem entender direito o como e o porquê. Sinto sua falta – outro mistério que eu já desisti de entender –, mas não estou sozinha. Você pode ficar em paz, onde quer que esteja.
E digo “onde” sem saber direito o que isso significa. Porque boa parte da nossa família tem fé, vovô. Eu não. Não sei o que acontece com a gente depois que nosso tempo na terra acaba. Mas eu espero que, se você está em algum lugar, que ele seja bom. Ao menos no meu coração, você vive em uma parte sempre ensolarada e feliz.
おじいさん おたんじょうび おめでとう
Feliz aniversário, vovô
Para provar que as relações humanas ultrapassam o palpável. Lindo texto, parabéns pelo fim da graduação! <3
Você traz uma tradução do meu pai em palavras que sempre faltaram a ele. Ele era pura atitude, teimoso em ser feliz, com espírito livre dentro das cercas da responsabilidade de um pai solo num momento que esta expressão nem existia.
Estou profundamente emocionada. Jorge Dota vive em você como vive no meu coração.
Obrigada por este presente em forma de texto. Te amo